Mas onde é que eu fui me meter? Essa direita olavete é uma vergonha!
Vocês devem lembrar daquela passagem do documentário Entreatos em
que Lula explica por que descartou a ideia de passar 20 ou 30 anos
“organizando o socialismo” para então, e só então, chegar ao poder. A
razão, não podemos negar, era objetiva e pragmática. “Quero chegar logo
ao poder”, disse então o ex-presidente.
Vista
em retrospecto, essa confissão no fundo dispensa qualquer outra. Todos
sabemos o que a conquista e a manutenção desse poder têm proporcionado
(a uns) e exigido (de outros). A lista é longa e começa sem dúvida com
Celso Daniel e a Carta aos brasileiros, mas é ingênuo esperar que termine com o petrolão.
Definitivamente,
não estou entre aqueles que atribuem o naufrágio moral do PT às
concessões feitas ao chamado pragmatismo político. Diferenças retóricas e
cosméticas à parte, a identidade profunda entre o petismo e a surrealpolitik
brasileira é tal que dispensa quaisquer concessões (exceto,
naturalmente, as retórico-cosméticas). O poder apenas revelou o PT tal
como sempre existiu, e revelou-o menos para nós que para uns quantos e
tantos petistas perplexos. Quer saber? Foi melhor assim. Fomos (nós e
eles) poupados de 20 ou 30 anos de mistificação.
Enquanto
isso, do lado de cá da barreira de contenção, a surpresa é perceber que
a direita olavete (presumidamente, a casta sacerdotal da nova direita)
jogou fora discursos e princípios para seguir, serelepe (pero sin perder la arrogancia jamás),
a primeira miragem de poder. Quem terá coragem de reconhecer que,
também aqui, o fruto apenas mostrou de que era feita a árvore?
Na
época em Lula descobriu o atalho capaz de abreviar sua longa espera, o
credo estratégico dessa direita (que nem era direita na verdade, pois
recusava uma rotulação exclusivamente política) preconizava 20 ou 30
anos de estudo e silêncio antes de qualquer intervenção no campo
político. Se então alguém me dissesse que essa geração ocupada em salvar
o Brasil com um teclado na mão e a alta cultura na cabeça em breve se
converteria em cabo eleitoral de Jair Bolsonaro, eu não me teria dado
sequer o trabalho de contestar essa intriga da oposição. Mas foi o que
aconteceu.
Antes
que me acusem de endossar a legenda negra criada em torno do deputado,
já adianto que não se trata disso. Limito-me apenas a observar que, se a
esquerda inventou um Bolsonaro na medida das suas conveniências, medos e
preconceitos, também a direita, num espasmo reativo, trata agora de
cultivar um Bolsonaro à imagem e semelhança de si mesma, sem dar-se
conta de que, enquanto isso, é ela quem sofre a verdadeira mutação. Como
seria impossível resumir aqui essa história, atenho-me às consequências
mais visíveis e atuais. A primeira das quais é uma deterioração
generalizada no padrão discursivo, nos critérios, juízos e mesmo nas
motivações pessoais.
A
semana que se seguiu à votação pela admissibilidade do impeachment foi
pródiga em exemplos disso. Tão logo a homenagem do deputado Bolsonaro ao
coronel Ustra começou a repercutir nas redes, essa direita prontamente
cerrou fileira em defesa de ambos. Admitindo graus diversos conforme a
consciência ou a conveniência de cada um, as reações iam do elogio ao
gênio estratégico do deputado a, no máximo, o reconhecimento de que a
homenagem tinha sido uma (ou seja, mais uma) mancada. Num caso como no
outro, o combate à narrativa esquerdista da história era o critério e a
causa suprema.
Não
tenho dúvida de que as mentiras que a esquerda projetou sobre a
história pesam em nosso destino político. Mas converter essa certeza em
absolvição automática num caso particular é absolutamente impossível.
Não sei se o coronel é culpado ou inocente. Sei, porém, que foi
condenado em dois processos na esfera cível, e que provavelmente já
teria sido condenado criminalmente se a ministra Rosa Weber, por força
da Lei da Anistia, não tivesse suspendido o processo criminal em
andamento.
Terão
sido essas condenações meras consequências jurídicas da narrativa
esquerdista da história? Talvez. Mas se vamos argumentar nesse sentido,
que seja ao menos em nome da verdade (quem possa REALMENTE falar em nome
dela, é claro), não para marcar posição numa guerra de narrativas.
Há
outro aspecto desse episódio que deixa ainda mais claro o automatismo
das reações do lado de cá do muro. Não parece ter ocorrido a ninguém a
hipótese de que, aos olhos do deputado Bolsonaro, o fato de o coronel
Ustra ter sido ou não torturador seja indiferente ou, pior ainda, que
seu heroísmo consista precisamente em ter torturado em nome do combate
ao comunismo. No entanto, se o Bolsonaro que prestou homenagem ao
coronel for o mesmo que deu a entrevista abaixo, deve-se reconhecer que a
última hipótese é de longe a mais provável.
É
verdade que essa hipótese estava implícita nos diversos memes que
punham lado a lado o coronel Ustra e os criminosos que a esquerda, na
mesma ocasião, achou de homenagear. As legendas sugeriam algo como: “se
eles podem, por que nós não?” Ora, se o coronel é inocente, a comparação
é injusta; se é culpado, como a comparação por si já insinua, só o que
podemos fazer é recordar o tempo em que ser apenas tão ruim quanto a
esquerda não bastava.
Cito
esse episódio apenas como exemplo, por ser o caso mais recente. Mas não
faltam registros, sobretudo ao longo dos últimos quatro anos, de como
enfim chegamos a isso. O fato é que hoje, movida a ambição, vaidade e
medo, uma multidão de macacas de auditório se acotovela em torno de um
exíguo picadeiro virtual, na esperança de negociar a própria dignidade
em troca de aprovação e algum aplauso.
Aplauso
caro sem dúvida, pois é preciso repetir tudo como já foi dito antes,
sempre a mesma ração habitual, com a condição de jamais tocar no que
está bem diante dos olhos, que é a única coisa verdadeira e essencial.
Agir de outro modo seria arriscar-se à execração e ao expurgo. Que os
mais fracos e inexperientes topem esse jogo é até compreensível, mas que
outros — aqueles que, como eu, já viveram isso bem de
perto — permaneçam voluntariamente nesse circo é coisa que a falta de
opção não basta para explicar. O pecado dessa gente é acreditar que o
mundo é do tamanho de um gueto de internet.
Claro
que há muitos modos de justificar essa prostituição. Podem disfarçá-la
como respeito, guerra cultural, gratidão, ou ainda rechaçar o “mimimi”
de quem se afaste e desconfie. Ultimamente a moda é xingar de tucano.
Não é engraçado? Até nisso a nova direita se espelha no petismo.
Em
2003, havia uma multidão de enganados vivendo intensamente a ilusão de
ter chegado ao poder através de Lula. É certo que a militância direitosa
também não poupará recursos retóricos (gramaticais, lógicos,
aritméticos, geométricos, astrológicos e musicais) para convencer o
eleitorado cativo de que Bolsonaro 2018 é o COF no poder. Viu? Nem foi
preciso esperar 20 ou 30 anos para descobrir do que se tratava afinal.
Se querem mesmo saber, foi melhor assim.
Fernando de Morais
https://medium.com/@fernandodemorais/mas-onde-%C3%A9-que-eu-fui-me-meter-essa-direita-olavete-%C3%A9-uma-vergonha-d68f5ebefc61#.eny829a6u
https://medium.com/@fernandodemorais/mas-onde-%C3%A9-que-eu-fui-me-meter-essa-direita-olavete-%C3%A9-uma-vergonha-d68f5ebefc61#.eny829a6u
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