segunda-feira, 2 de maio de 2016

Mas onde é que eu fui me meter? Essa direita olavete é uma vergonha! - Fernando de Morais

Mas onde é que eu fui me meter? Essa direita olavete é uma vergonha!

Vocês devem lembrar daquela passagem do documentário Entreatos em que Lula explica por que descartou a ideia de passar 20 ou 30 anos “organizando o socialismo” para então, e só então, chegar ao poder. A razão, não podemos negar, era objetiva e pragmática. “Quero chegar logo ao poder”, disse então o ex-presidente.
Vista em retrospecto, essa confissão no fundo dispensa qualquer outra. Todos sabemos o que a conquista e a manutenção desse poder têm proporcionado (a uns) e exigido (de outros). A lista é longa e começa sem dúvida com Celso Daniel e a Carta aos brasileiros, mas é ingênuo esperar que termine com o petrolão.
Definitivamente, não estou entre aqueles que atribuem o naufrágio moral do PT às concessões feitas ao chamado pragmatismo político. Diferenças retóricas e cosméticas à parte, a identidade profunda entre o petismo e a surrealpolitik brasileira é tal que dispensa quaisquer concessões (exceto, naturalmente, as retórico-cosméticas). O poder apenas revelou o PT tal como sempre existiu, e revelou-o menos para nós que para uns quantos e tantos petistas perplexos. Quer saber? Foi melhor assim. Fomos (nós e eles) poupados de 20 ou 30 anos de mistificação.
Enquanto isso, do lado de cá da barreira de contenção, a surpresa é perceber que a direita olavete (presumidamente, a casta sacerdotal da nova direita) jogou fora discursos e princípios para seguir, serelepe (pero sin perder la arrogancia jamás), a primeira miragem de poder. Quem terá coragem de reconhecer que, também aqui, o fruto apenas mostrou de que era feita a árvore?
Na época em Lula descobriu o atalho capaz de abreviar sua longa espera, o credo estratégico dessa direita (que nem era direita na verdade, pois recusava uma rotulação exclusivamente política) preconizava 20 ou 30 anos de estudo e silêncio antes de qualquer intervenção no campo político. Se então alguém me dissesse que essa geração ocupada em salvar o Brasil com um teclado na mão e a alta cultura na cabeça em breve se converteria em cabo eleitoral de Jair Bolsonaro, eu não me teria dado sequer o trabalho de contestar essa intriga da oposição. Mas foi o que aconteceu.
Antes que me acusem de endossar a legenda negra criada em torno do deputado, já adianto que não se trata disso. Limito-me apenas a observar que, se a esquerda inventou um Bolsonaro na medida das suas conveniências, medos e preconceitos, também a direita, num espasmo reativo, trata agora de cultivar um Bolsonaro à imagem e semelhança de si mesma, sem dar-se conta de que, enquanto isso, é ela quem sofre a verdadeira mutação. Como seria impossível resumir aqui essa história, atenho-me às consequências mais visíveis e atuais. A primeira das quais é uma deterioração generalizada no padrão discursivo, nos critérios, juízos e mesmo nas motivações pessoais.
A semana que se seguiu à votação pela admissibilidade do impeachment foi pródiga em exemplos disso. Tão logo a homenagem do deputado Bolsonaro ao coronel Ustra começou a repercutir nas redes, essa direita prontamente cerrou fileira em defesa de ambos. Admitindo graus diversos conforme a consciência ou a conveniência de cada um, as reações iam do elogio ao gênio estratégico do deputado a, no máximo, o reconhecimento de que a homenagem tinha sido uma (ou seja, mais uma) mancada. Num caso como no outro, o combate à narrativa esquerdista da história era o critério e a causa suprema.
Não tenho dúvida de que as mentiras que a esquerda projetou sobre a história pesam em nosso destino político. Mas converter essa certeza em absolvição automática num caso particular é absolutamente impossível. Não sei se o coronel é culpado ou inocente. Sei, porém, que foi condenado em dois processos na esfera cível, e que provavelmente já teria sido condenado criminalmente se a ministra Rosa Weber, por força da Lei da Anistia, não tivesse suspendido o processo criminal em andamento.
Terão sido essas condenações meras consequências jurídicas da narrativa esquerdista da história? Talvez. Mas se vamos argumentar nesse sentido, que seja ao menos em nome da verdade (quem possa REALMENTE falar em nome dela, é claro), não para marcar posição numa guerra de narrativas.
Há outro aspecto desse episódio que deixa ainda mais claro o automatismo das reações do lado de cá do muro. Não parece ter ocorrido a ninguém a hipótese de que, aos olhos do deputado Bolsonaro, o fato de o coronel Ustra ter sido ou não torturador seja indiferente ou, pior ainda, que seu heroísmo consista precisamente em ter torturado em nome do combate ao comunismo. No entanto, se o Bolsonaro que prestou homenagem ao coronel for o mesmo que deu a entrevista abaixo, deve-se reconhecer que a última hipótese é de longe a mais provável.
É verdade que essa hipótese estava implícita nos diversos memes que punham lado a lado o coronel Ustra e os criminosos que a esquerda, na mesma ocasião, achou de homenagear. As legendas sugeriam algo como: “se eles podem, por que nós não?” Ora, se o coronel é inocente, a comparação é injusta; se é culpado, como a comparação por si já insinua, só o que podemos fazer é recordar o tempo em que ser apenas tão ruim quanto a esquerda não bastava.
Cito esse episódio apenas como exemplo, por ser o caso mais recente. Mas não faltam registros, sobretudo ao longo dos últimos quatro anos, de como enfim chegamos a isso. O fato é que hoje, movida a ambição, vaidade e medo, uma multidão de macacas de auditório se acotovela em torno de um exíguo picadeiro virtual, na esperança de negociar a própria dignidade em troca de aprovação e algum aplauso.
Aplauso caro sem dúvida, pois é preciso repetir tudo como já foi dito antes, sempre a mesma ração habitual, com a condição de jamais tocar no que está bem diante dos olhos, que é a única coisa verdadeira e essencial. Agir de outro modo seria arriscar-se à execração e ao expurgo. Que os mais fracos e inexperientes topem esse jogo é até compreensível, mas que outros — aqueles que, como eu, já viveram isso bem de perto — permaneçam voluntariamente nesse circo é coisa que a falta de opção não basta para explicar. O pecado dessa gente é acreditar que o mundo é do tamanho de um gueto de internet.
Claro que há muitos modos de justificar essa prostituição. Podem disfarçá-la como respeito, guerra cultural, gratidão, ou ainda rechaçar o “mimimi” de quem se afaste e desconfie. Ultimamente a moda é xingar de tucano. Não é engraçado? Até nisso a nova direita se espelha no petismo.
Em 2003, havia uma multidão de enganados vivendo intensamente a ilusão de ter chegado ao poder através de Lula. É certo que a militância direitosa também não poupará recursos retóricos (gramaticais, lógicos, aritméticos, geométricos, astrológicos e musicais) para convencer o eleitorado cativo de que Bolsonaro 2018 é o COF no poder. Viu? Nem foi preciso esperar 20 ou 30 anos para descobrir do que se tratava afinal. Se querem mesmo saber, foi melhor assim.

Fernando de Morais

https://medium.com/@fernandodemorais/mas-onde-%C3%A9-que-eu-fui-me-meter-essa-direita-olavete-%C3%A9-uma-vergonha-d68f5ebefc61#.eny829a6u

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