domingo, 13 de março de 2016

A única cena que presta em “The Revenant” é o ataque da ursa — realista e tecnicamente exato. No mais, nunca ouvi tanto gemido num filme só (com exceção dos pornográficos), nem vi cenas de miséria física e sujeira tão longas e sem função dramática nenhuma. É uma pena desperdiçar um ator bom como Leonardo di Caprio com um diretor tão chinfrim.

É um princípio elementar da arte narrativa que a dor física mostrada de maneira direta, literal e insistente só enche o saco. O sofrimento do corpo comove menos por si mesmo do que pelas suas repercussões na existência do personagem. A cena famosa em que Ronald Reagan exclama “Onde está o resto de mim?” dura dois segundos, mas toca o coração da platéia mil vezes mais fundo do que todos os grunhidos sem fim do Leonardo de Caprio (em “Kings Row”(1942))

A cena de “Papillon” em que o velho prisioneiro implora ao recém-chegado “Diga como é o meu rosto, não consigo mais me lembrar dele” provoca mais arrepios na espinha do que mil vampiros com dentes gotejando sangue.

A cena de “O Falso Traidor” em que William Holden, preso no subterrâneo de uma prisão nazista, vê pela janelinha a namorada sendo fuzilada e grita o nome dela, caindo em seguida num silêncio prostrado, toca muito mais a platéia do que esses atores e personagens histéricos que, com o cadáver da amada entre os braços, olham para o céu e gritam um “Nooooooooooooo!” que ribomba no horizonte e não acaba mais.

Uma das minhas cenas prediletas no cinema é aquela em que Alan Ladd faz um pintor casado com uma mulher doida, que um dia, quando ele viaja, destrói todos os seus quadros. A cara de “meu mundo caiu” que Ladd faz sem mover um músculo é um grande momento de um ator que, no mais, nada tinha de genial. (EM ''The Man in the Net'', com o título em português, A Mulher Que Comprou a Morte (1959))

Um diretor bom pega qualquer zé-mané na rua e o faz representar como se fosse Sir Lawrence Olivier. Rossellini fazia isso. Um diretor bunda se mela mesmo tendo Leonardo di Caprio à sua disposição.

Por que o sofrimento corporal, em “A Paixão de Cristo”, funciona? Vocês notaram como as expressões de dor do Jim Caviezel são discretas, sutis, comedidas? A ênfase, ali, não está na dor enquanto tal, mas no contraste entre a humilhação brutal e a nobreza divina do Corpo de Cristo. É um efeito dramático, não um exibicionismo fisiológico.

Em “the Revenant”, para completar a miséria. só faltou o personagem cagar. Foi uma distração do diretor.

Em “The Revenant”, os únicos e vagos sinais de algum aprendizado espiritual nas experiências do Sr. Glass são os chavões de sempre sobre a sabedoria indígena. A palavra “Jesus” reduz-se a um expletivo e a frase “A vingança é minha, diz o Senhor” — aprendida, como não poderia deixar de ser, de um índio — não é uma intuição moral nascida do sofrimento, é apenas um comentário verbal à feliz coincidência do encontro com os índios que estavam em busca do mesmo assassino. O filme avilta o sofrimento humano, reduzindo-o uma experiência fisiopatológica descrita com detalhes de Grand Guignol. Glass e o índio mastigando carne de bisão crua bem ao lado de uma fogueira rebaixam o trágico ao tragicômico involuntário, e daí por diante a única razão que você tem para continuar sentado na poltrona do cinema é que ainda restam muitas pipocas no balde.

Nem os caiçaras mais pobres, incultos e primitivos que conheci na mata de Cananéia durante o Recenseamento Escolar nos anos 60 do século passado eram tão sujos e porcalhões quanto os personagens de “The Revenant”. O diretor deve ter feito cursinho de escrotidão com o Maestro Chupa Bagos.

Não é que esse pessoal de Hollywood não saiba mais fazer um filme. Eles já não sabem nem JULGAR um.

Se você quer um filme fisicamente nojento, mas repleto de sentido moral (ao contrário de “The Revenant”), veja “Bone Tomahawk”, com Kurt Russell. E se quer o sentido moral sem escrotidão fisiológica, veja “Forsaken”, com Donald e Kiefer Sutherland (pai e filho fazendo os papéis de pai e filho).

Bons tempos aqueles em que a onda de Hollywood era sexo. Agora é comida estragada, gangrena, tumores supurados, narizes arrancados e pedaços de gente espalhados no chão.Hollywood, como Michel Foucault, superou o sexo. Descobriu um barato mais excitante.

Não se preocupe com a invasão de zumbis. Ela já aconteceu e a gente nem reparou.

Acabo de assistir "Indian Fighter", com Kirk Douglas (1955), para ver se me curo dos efeitos letais de "The Revevant". Já estou melhorzinho.


O de C

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