A única cena que presta em “The Revenant” é o ataque da ursa —
realista e tecnicamente exato. No mais, nunca ouvi tanto gemido num
filme só (com exceção dos pornográficos), nem vi cenas de miséria física
e sujeira tão longas e sem função dramática nenhuma. É uma pena
desperdiçar um ator bom como Leonardo di Caprio com um diretor tão
chinfrim.
É um princípio elementar da arte narrativa que a dor física mostrada
de maneira direta, literal e insistente só enche o saco. O sofrimento do
corpo comove menos por si mesmo do que pelas suas repercussões na
existência do personagem. A cena famosa em que Ronald Reagan exclama
“Onde está o resto de mim?” dura dois segundos, mas toca o coração da
platéia mil vezes mais fundo do que todos os grunhidos sem fim do
Leonardo de Caprio (em “Kings Row”(1942))
A cena de “Papillon” em que o velho prisioneiro implora ao
recém-chegado “Diga como é o meu rosto, não consigo mais me lembrar
dele” provoca mais arrepios na espinha do que mil vampiros com dentes
gotejando sangue.
A cena de “O Falso Traidor” em que William Holden, preso no
subterrâneo de uma prisão nazista, vê pela janelinha a namorada sendo
fuzilada e grita o nome dela, caindo em seguida num silêncio prostrado,
toca muito mais a platéia do que esses atores e personagens histéricos
que, com o cadáver da amada entre os braços, olham para o céu e gritam
um “Nooooooooooooo!” que ribomba no horizonte e não acaba mais.
Uma das minhas cenas prediletas no cinema é aquela em que Alan Ladd
faz um pintor casado com uma mulher doida, que um dia, quando ele viaja,
destrói todos os seus quadros. A cara de “meu mundo caiu” que Ladd faz
sem mover um músculo é um grande momento de um ator que, no mais, nada
tinha de genial. (EM ''The Man in the Net'', com o título em português, A Mulher Que Comprou a Morte (1959))
Um diretor bom pega qualquer zé-mané na rua e o faz representar como
se fosse Sir Lawrence Olivier. Rossellini fazia isso. Um diretor bunda
se mela mesmo tendo Leonardo di Caprio à sua disposição.
Por que o sofrimento corporal, em “A Paixão de Cristo”, funciona?
Vocês notaram como as expressões de dor do Jim Caviezel são discretas,
sutis, comedidas? A ênfase, ali, não está na dor enquanto tal, mas no
contraste entre a humilhação brutal e a nobreza divina do Corpo de
Cristo. É um efeito dramático, não um exibicionismo fisiológico.
Em “the Revenant”, para completar a miséria. só faltou o personagem cagar. Foi uma distração do diretor.
Em “The Revenant”, os únicos e vagos sinais de algum aprendizado
espiritual nas experiências do Sr. Glass são os chavões de sempre sobre a
sabedoria indígena. A palavra “Jesus” reduz-se a um expletivo e a frase
“A vingança é minha, diz o Senhor” — aprendida, como não poderia deixar
de ser, de um índio — não é uma intuição moral nascida do sofrimento, é
apenas um comentário verbal à feliz coincidência do encontro com os
índios que estavam em busca do mesmo assassino. O filme avilta o
sofrimento humano, reduzindo-o uma experiência fisiopatológica descrita
com detalhes de Grand Guignol. Glass e o índio mastigando carne de bisão
crua bem ao lado de uma fogueira rebaixam o trágico ao tragicômico
involuntário, e daí por diante a única razão que você tem para continuar
sentado na poltrona do cinema é que ainda restam muitas pipocas no
balde.
Nem os caiçaras mais pobres, incultos e primitivos que conheci na
mata de Cananéia durante o Recenseamento Escolar nos anos 60 do século
passado eram tão sujos e porcalhões quanto os personagens de “The
Revenant”. O diretor deve ter feito cursinho de escrotidão com o Maestro
Chupa Bagos.
Não é que esse pessoal de Hollywood não saiba mais fazer um filme. Eles já não sabem nem JULGAR um.
Se você quer um filme fisicamente nojento, mas repleto de sentido
moral (ao contrário de “The Revenant”), veja “Bone Tomahawk”, com Kurt
Russell. E se quer o sentido moral sem escrotidão fisiológica, veja
“Forsaken”, com Donald e Kiefer Sutherland (pai e filho fazendo os
papéis de pai e filho).
Bons tempos aqueles em que a onda de Hollywood era sexo. Agora é
comida estragada, gangrena, tumores supurados, narizes arrancados e
pedaços de gente espalhados no chão.Hollywood, como Michel Foucault,
superou o sexo. Descobriu um barato mais excitante.
Não se preocupe com a invasão de zumbis. Ela já aconteceu e a gente nem reparou.
Acabo de assistir "Indian Fighter", com Kirk Douglas (1955), para ver
se me curo dos efeitos letais de "The Revevant". Já estou melhorzinho.
O de C
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