Escrevi uns dois anos atrás:
Schelling tinha um interesse
grande pela demonologia. Para ele a existência de uma potência
escarnecedora e tentadora era evidenciada por toda a realidade que nos
cerca. A majestade dessa força, desse ser, reside em seu papel de trazer
todo o mal escondido à tona, de testar toda verdade e força não
comprovada, exigindo que o caminho da glória seja trespassado pelo
sofrimento e pela oposição. Segundo ele, podemos constatar em nós mesmos
um certo prazer no mal alheio, mesmo que da pessoa mais amada e
querida. Há algo em nós que ama ver o que não deveria ser, a ruína da
vontade divina,se efetivar. Algo que sempre diz e ecoa: Por que não?
Quem é este mísero humano que acredita que não pode e não deve passar
por essas coisas? É em nós mesmos uma força anti-humana, para a qual
sempre fomos e sempre seremos barro que voltará ao barro.
Seguindo a regra de que enxergamos melhor o mal em outrem, digo que
certos acontecimentos de minha vida(tanto vindo de atos meus quando de
atos sofridos) só fazem sentido diante da terrível atração que
“aquilo-que-não-deveria-ser” exerce sobre a vontade humana. Todo ser
humano tem seu calcanhar de Aquiles, aquele ponto terrível da dor que
tenta ocultar a todos e só mostra àqueles que mais confia e ama. Mas
mesmo esse movimento de proximidade é perigoso: sem saber, ao apresentar
nossa fraqueza também tentamos terrivelmente o próximo. Antes da
revelação quase que dizemos: esse que se defronta comigo sequer tentaria
me ferir ali. Mas eis que no exato momento em que mais precisamos, em
que a oportunidade da ferida se apresenta, há um encaixe perfeito entre o
golpe e a fraqueza. As confidências e confissões mais doces se
transformam em armas; o ser que lhe prometia a mais elevada lealdade e
dedicação age como se quisesse tornar efetivo o contrário do que
prometeu e sonhou. A natureza objetiva dessa potência se revela no fato
de que tudo parece tão premeditado, feito na pior hora e da pior forma,
sem que possamos efetivamente conceber que a pessoa tenha maquinado
aquilo daquela forma. Há aí uma inteligência abismal, um lusco-fusco de
luz e trevas, uma intuição profunda do que será mais doloroso.
E
, no entanto, tal liberdade negativa e destrutiva nunca deixará de ser
também o testemunho de nossa possível grandeza. É conhecendo essa
terrível atração, em si e nos outros, que começamos a entender a beleza e
a majestade da força contrária que pode lhe resistir. Cada queda no
abismo testemunha de forma inversa a grandeza daquilo que poderia
escalá-lo. A vertigem atrativa é sempre uma marca da nossa passividade,
por mais que muitos queiram ver no botão do “foda-se” uma declaração de
força e liberdade. Mas é na atividade contrária, aquela que diz “não”,
que se encontra nossa real força ( É quando sou fraco que sou forte).
Não é à toa que a magnanimidade sempre foi uma virtude dos grandes e
poderosos: aquele que tudo pode tem diante de si a maior oportunidade de
elevação e queda. Segundo o mundo, a indiferença e a crueldade seriam a
marca da independência e do poder. Só que esse mundo é um naufrágio,
onde cada náufrago busca se vingar de suas perdas causando mais
naufrágios. Gastamos nossa última réstia de fôlego para arrastar outros
ao fundo do mar e não para chegar à superfície. E quantos não são
aqueles prometem as maiores virtudes quando se veem oprimidos, mas não
perderão a primeira oportunidade de oprimir? O mal é um contágio, uma
efetividade que precisará se exprimir de alguma força se algo de mais
efetivo não o dominar. Eis aí o perigo de se aferrar demais à imagem do
mal como uma ausência: ele foi, é e assim sempre será diante da vontade
divina, mas nesse mundo é de certa forma a efetividade das efetividades.
Não basta nos ausentar em uma vida mole e indiferente para vencer sua
potência: é preciso combater a cada dia e cada hora.
Murilo Resende
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