quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

A melhor crítica literária é aquela que abandona o sentido literal do texto e recupera sua universalidade profunda, reconhecendo nele a expressão potencial simultânea de centenas ou milhares de coisas diferentes. Costumo referir-me a isso como "leitura simbólica" ou "leitura contemplativa" -- algo muito diferente da "leitura alegórica", que consiste simplesmente em traduzir o sentido literal do texto para outro sentido igualmente particular que, supostamente, está por trás dele.

Rafael Falcón Passei a faculdade toda revirando livros de crítica literária e achando tudo uma bosta, mas achei alguns que valem a pena, e com eles aprendi quase tudo o que sei. Os ingleses merecem toda a nossa gratidão por terem inventado o "practical criticism", pois isso só se aprende vendo alguém fazer.

Mauro S. Silva As per your comment… Eu gostaria de te pedir que indique uma obra de crítica literária, ou até mesmo um crítico que realize tal abordagem.
 
Rafael Falcón Você não vai ver isso em plenitude em nenhum livro que eu conheça, mas alguns vão ajudar a apontar o caminho. Os ensaios de T. S. Eliot, "Practical Criticism" de I. A. Richards e "The Living Principle" de F. R. Leavis seriam a minha "santíssima trindade" da crítica.
 
Por exemplo, pode-se ler o soneto camoniano "Amor é fogo..." em seu sentido primário, como um estudo de Eros, ou alegoricamente, interpretando o Amor como o conceito doutrinal de Espírito Santo. As duas leituras funcionarão, como num jogo de ambiguidades. Mas para ler o soneto em toda a sua profundidade, será necessário fundir a leitura literal com a alegórica, atingindo um conceito de amor que engloba simultaneamente a relação erótica homem-mulher e o Amor divino.

Na verdade, essa síntese é que seria o verdadeiro Espírito Santo, e o propósito do poeta é te ensinar algo sobre o mesmo Espírito. Mas a leitura alegórica bloqueia o entendimento e não permite que você aprenda coisas novas. Por isso ela é sempre uma etapa muito básica da leitura, comparável ao processo de olhar as palavras desconhecidas no dicionário.

E ela só serve em alguns casos, muito limitados. O poeta tem que convidar à leitura alegórica, senão ela não passa de uma projeção da vaidade do leitor.

Atila de Almeida Rafael Falcón, o que dizer do tipo de interpretação que tende a relacionar o conteúdo de um texto com seu contexto e, dessa forma, atribuir-lhe um significado harmônico com a época do texto em questão, de certa forma, está claro, sugerindo que esse tipo de relação texto/contexto é a chave "social", "histórica" ou seja lá o que for que abriria para os significados? Ex: o poema que você citou de Camões poderia ser usado para compreender a ideia de "amor" de uma determinada época: a de Camões e suas heranças anteriores. O que você pensa sobre esse tipo de relação que, aparentemente, "abre" o texto ? Aparentemente....
Rafael Falcón Isso não é crítica literária, é sociologia histórica, e extremamente problemática, porque é possível (e no caso de Camões, EVIDENTE) que o escritor seja "sui generis", e não representativo da média dos seus contemporâneos. De qualquer forma, mesmo que fosse bem-feito, não esclareceria nada sobre o texto em si.
Atila de Almeida
Atila de Almeida É bem o que penso. Se esse tipo de leitura "abre" alguma coisa, essa coisa é o que nós damos valor, ou melhor, o que o sociólogo ou historiador, como você disse, dá valor. O texto fica lá parado.
Rafael Falcón
Rafael Falcón Outra coisa: esse tipo de estudo PRESSUPÕE que o historiador ou sociólogo seja plenamente capaz de interpretar o texto, o que geralmente não é o caso. Qualquer objeção levantada à interpretação textual derrubaria toda a tese do estudioso. É delicadíssimo.
Atila de Almeida
Atila de Almeida Então, há ainda outra questão importante: deixe-me voltar ao exemplo de Camões (mas poderia ser qualquer outro). No caso, um tipo de interpretação estaria interessada em pensar Eros; por outro lado, o outro tipo, o alegórico, o conceito doutrinal do Espírito Santo. Você disse que o importante é relacionar as duas coisas, para ganhar profundidade. Mas um texto pode ter diversas interpretações razoáveis. Como você pensa essa questão? Como saber que há um "limite", ou um "já basta", de relações e fundições entre tipos de interpretação diferentes. Ou não há esse tipo de necessidade? O que acha?
Rafael Falcón
Rafael Falcón O texto ele mesmo determinará que interpretações são cabíveis, e quais não são. Um texto PODE ter várias interpretações razoáveis, mas isso não é tão comum quanto alguns imbecis acadêmicos gostariam que fosse.
Atila de Almeida
Atila de Almeida Não sei se é abusar da sua paciência, mas você poderia se alongar um pouco mais nesse último ponto? Se não puder, tudo bem.
Rafael Falcón
Rafael Falcón Eu bem que gostaria, mas não teria espaço para explicar isso aqui. Num ensaio futuro, espero esclarecer o problema.
 
Rafael Falcon   
 
 

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